Contista

    Meu dia começa na melhor das hipóteses às duas da tarde.

   Ultimamente não tenho estado bem, então pode começar às quatro, ou se eu acordar mais cedo que às duas e não conseguir dormir novamente, forço-me a dormir mais um pouco, até no máximo umas seis da tarde; acordar depois que escurece me deprime; fica mais longe para comprar cigarros também.

   Eu estou desempregado e normalmente às duas da madrugada estou iniciando – ou já escrevendo, quando estou bem – minha pesquisa.

   Num dia como hoje, somente posso mesmo começar a escrever depois da uma, uma e meia da manhã, afinal o ensaio da banda acabou meia-noite e meia e ainda tem conversa de meia hora na porta do estúdio, que graças a Deus não é muito longe, no centro da cidade, e recebo carona de um amigo; depois de chegar em casa ainda tenho normalmente que fazer comida, então você entende.

   Hoje, particularmente, não achei o ensaio bom.

  Minha cabeça está tão ruim que esqueci o contrabaixo no estúdio, por sorte o dono é um novo e bom amigo, um cara cuidadoso. Eu estou triste faz um tempo, e na última apresentação domingo (hoje é terça-feira), erramos muito e não agradamos, acho; pelo menos não cumprimos nosso potencial, veja, acho que acertamos mais do que erramos, mas a responsabilidade que cobramos de nós mesmos vai reforçando um grande perfeccionismo, que para uma banda que não ensaia, na minha opinião só atrapalha.

   É isso que eu acho, e contei para eles, que para uma banda que ensaia a cada dois meses o show foi bom.

   Não foi a mesma banda que ensaiamos hoje a tocar domingo, e quando todos os projetos estão fluindo, tenho ensaios a semana inteira, imagine.

   Bem, agora já comi algum resto da geladeira, são três horas e nove minutos da manhã enquanto escrevo isto.

   Alterno agora meus dedos entre o cigarro Marlboro, uma cachaça barata de três reais por meio litro que bebo pura com gelo, e meu teclado.

   Mas voltando para os meus dias em geral.

   Bem, eu acordo, ponho água para esquentar. Eu não tomava café antes de me casar – nunca casei propriamente, vivi amasiado dois anos, casamento moderno, “juntar os panos” – mas aprendi a passar café com minha ex-esposa e logo ela não fazia mais, mas pedia que eu fizesse, porque o meu era melhor; assim ganhei mais um vício.

   Depois de tomar café me sinto melhor.

  Exceto pela gastrite, que se agrava. Então encho um copo de gelo – sem comer antes, ultimamente, eu não fazia isto antes – e começo pelo primeiro copo de pinga.

  Depois do café já posso conversar sem grunhir ou destratar alguém, e depois de dois copos de pinga posso até cantar sem reflexos de regurgitação provocados pela gastrite; estes raramente se efetivam; a não ser que eu fume maconha junto com o raio do café, uma combinação desastrosa, mas há meses não fumo mais diariamente.

   Detesto ficar bêbado, então logo após esses copos forço-me a comer algo, mesmo que pouco, mesmo sem fome alguma.

   Acredite, eu posso beber cachaça pura, misturar com cerveja ou qualquer outra coisa hodiernamente, da hora em que acordo até o minuto em que vou dormir já claro no céu, sem que por uma única vez na minha vida tenha sido carregado ou perdido a consciência. Se isto é bom ou ruim a longo prazo, o futuro vai dizer.

   Bem, então estou sentado com meu café, e o que houver sobrado de meus cigarros da madrugada anterior; já liguei meu computador quando antes de pôr água para esquentar, e vou checar e-mails e comunicações no Facebook, religiosamente; pode haver coisa importante de um dia para o outro.

   Eu posso, por exemplo, ter recebido algum e-mail da minha editora, uma moça que só conheço pela internet ainda, parece ser muito querida, e estou enviando mais dois contos para a segunda antologia independente que ela organiza, e eu participo. Ou alguma banda pode ter marcado ensaio, e internet economiza muito crédito de telefone, para organizar tais coisas.

   O café esfriou nessa hora, então ou jogo fora e recompleto a caneca – não posso tomar mais do que duas ou minha gastrite não me deixará em paz pelo resto do dia – ou requento o que tiver dentro no forno de micro-ondas, dependendo da fartura ou escassez de pó de café.

   Logo sinto falta de música.

  Não tenho mais paciência em escolher um entre oito mil arquivos de mp3 como antes, então simplesmente abro o site Youtube, e ouço algumas das recomendações até que eu mesmo sinta falta de ouvir algo específico e digite ali mesmo.

   Desempregado, nessa hora estou de olho se minha mãe passa no corredor para lhe surrupiar alguns reais para cigarro e pinga.

   Acompanho um pouco das atualizações de amigos no Facebook, e logo enjoo da tarefa.

  Passo a ler artigos de política, e ultimamente tento não ler mais do que dois ou três, pois o assunto não é mais tão emocionante quanto antes, mas deprimente e obrigatório. Ou pode ser filosofia ou religião.

  Curioso, não tenho paciência para frivolidades quando estou sozinho, e insisto em não discutir as coisas sérias e quase imploro por conversas amenas com os amigos quando no bar. Como disse, não tenho estado bem.

   Eu há poucos meses conheci a moça que julguei, seria a mulher da minha vida. Eu estava bem, eu juro, tinha diminuído com as noitadas, as drogas, estava voltando mais cedo.

   Mas ela fez questão de concentrar-se mais em meus defeitos, e permita-me te contar, ter um copo de pinga com gelo – mesmo que eu nunca tenha ficado – muito – bêbado na frente dela, ou ainda menos, jamais agredido uma mulher ou perdido a paciência com qualquer um por causa da bebida – nas mãos as vinte e quatro horas do dia não causa boa impressão. Bem. Já voltamos a isso, ou talvez não.

   Meu próximo passo é abrir um arquivo de texto que mantenho no desktop, com dois textos curtos, ajoelhar-me, e recitar as duas orações que faço todos os dias sem pular um desde que a conheci, pedindo a Deus que apare as arestas, e que se ela me ama de verdade, tenha coragem de ser minha esposa.

  Ela julga que por ser escritor e músico, alcoólatra, e com uma grande dose de arrogância, não mereço o amor dela. Nem mesmo fala mais comigo, ainda assim rezo todos os dias, sem falta. Sou um católico devoto, mas isto é matéria para outros textos.

   Como concilio minha religião com meu estilo de vida degradado, não me perguntem, deixem que Deus me perdoe ou condene.

  Quando comecei meu primeiro livro, namorava ainda outra moça, que eu amava profundamente, que me abandonou com ainda menores explicações, o que me provocou o tal ‘bloqueio de escritor’ por meses. Quando conheci esta última musa inspiradora, escrevia quatro mil palavras por noite no mínimo, tive ideias para novos contos e comecei até a arriscar um romance. Agora está tudo parado novamente… Ou quase.

   Preferia não explicar porque uma única moça foi causadora – ou catalizadora – da tristeza tão grande nos últimos meses, pois seria obrigado a voltar e explicar a anterior e a anterior, e contar a vida inteira.

   Mas a verdade é que depois do café com cigarro, das duas doses para acalmar a gastrite, das minhas orações, de checar minhas comunicações, de ler algo instrutivo (se eu tiver a chance e a capacidade de me concentrar), eu estou ouvindo música, e logo estou chorando. Muito naturalmente, diariamente.

   A partir daí duas coisas invariavelmente acontecem: ou me forço a trabalhar, pode ser com música, ou pesquisa e escrita, ou a tristeza domina e eu espero a madrugada para tentar de novo.

  De madrugada não posso tocar ou gravar, então se decidir pela música posso apenas mixar arquivos já gravados, usando fones de ouvido que me esquentam as orelhas. Normalmente escrevo, leio, ou assisto filmes.

   Filmes têm sido chatos de assistir depois que meu monitor queimou e estou com um daqueles antigos emprestados, nada cabe na tela quase esférica. Estou chorando vendo comédias do Gene Wilder e Richard Pryor, e do Peter Sellers, calcule meu nível de depressão. Mas normalmente vejo algo de terror, para obter inspiração para meus contos.

   Eu sempre amei horror.

  Eu fugia do berço quando era bebê, ligava a televisão bem baixinho, quando via a chamada para algum filme bom de madrugada.

  Talvez assim começou minha insônia? Não sei. Sem nem saber ler direito, com cinco ou seis anos não podia desgrudar de uma edição barata e empoeirada do Drácula de Bram Stocker.

   Então de madrugada já andei de um lado para o outro percorrendo o corredor da casa a tarde toda, e comecei a andança de tarde, de preferência depois que minha mãe já está atendendo seus pacientes – e o olhar dela demonstra claramente perceber toda a minha conturbação e não é nada agradável – tendo todo o tipo de ideia entre as lamentações de autocomiseração, e quando algo sólido formou-se em minha mente, é como uma obrigação, sentar-se e escrever.

   É uma hora boa, porque quase não há interrupções de madrugada, e eu já digeri nesta hora todas as informações necessárias para criar um ambiente de narrativa realista, enquanto minha cabeça ferve, indo e voltando no enredo, e anoto todas as frases impactantes que possa pensar.

   Minha pesquisa é ‘cabeluda’; já li quatro mil anos da história da cidade de Belfast no Wikipédia para utilizar informação nenhuma em um único parágrafo de um conto.

    Cá entre nós, nada mais do que a obrigação com aquele perfeccionismo abjeto que já mencionamos em outra forma de arte acima.

   Gosto de dar informações, enriquecer o texto. Se se passar em Curitiba, melhor ainda, conheço muitas das coisas prosaicas desta minha cidade que me esforço para continuar amando.

   Depois escrevo como alguém que vomita.

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