Carta a Mim Mesmo

 

É difí… deve ser difícil chegar no futuro e descobrir que você não é o herói imaginado, você é o vilão; você é uma força de destruição.

Você não é nem de perto bonito como gostaria. Quando tinha dezessete anos o cabelo comprido e o sorriso até prometiam, mas não foi o caso; o tempo lhe judiou.

Você tem quase quarenta anos e toda vez que ouviu “eu te amo” parecia verdade, mas não era.

Confiando num instinto arrogante, você não construiu nada, se fiou numa sorte e no nada, e ficou no comodismo.

Você não tem simplesmente nada para mostrar.

Você é feio, e se esquecer de se cuidar, aparar o cabelo, a barba, de tirar os óculos para a fotografia, você envelhece oito anos agora.

Sua ex-namorada lhe olhava meio assustada depois que você aplicava todos os esforços no corpo dela, por boa meia hora, ao sair ofegante por uns bons dois minutos, depois de fumar duas carteiras por dia.

Mas agora, amigo, nem namorada você tem mais.

Você sabe que bebe. Você nem faz força para negar mais.

— Alcoólatra. – e acena “sim” com a cabeça.

E não adianta qualquer coisa, tem de ser pinga pura, da mais barata, de garrafa de plástico. Você prefere esta.

Quando a cabeça estava quase ficando boa, seu idiota, você foi atropelado. Nem adianta contar a verdade e dizer que você estava na calçada; todos sempre vão pensar que você é um bêbado.

E que dizer; sua vida está parada. A cabeça roda para chegar a todo minuto no mesmo lugar: você agora está velho, cheio de manias e idiossincrasias.

A sua ansiedade nem lhe deixa extrair muita sabedoria da experiência: você treme é de medo de ficar sem cigarro ou bebida de madrugada e não poder nem sair para comprar, com esse tornozelo moído e sem dinheiro nenhum.

Você nem sequer lembra mais de sua vida antes dela se tornar um poema de Augusto dos Anjos, e isso muito antes do acidente.

Meu amigo, com o tempo, eu tenho nutrido desprezo por você.

Você me siga no que digo e não poderá não me dar razão.

Você sonhava com filhos. Deve ser a única pessoa que eu conheço. Mas ao que parece, sinto muito! Você não está qualificado.

Você sabe perfeitamente que não aguenta a carga nem o risco de acontecer de novo depois das duas últimas; encontrar outra igual; mas o filho você não faz sozinho, não, senhor.

Você gostava da latrina da rua, por que não volta para lá?

Deleitava-se na fossa, por que ficou ruim de repente?

Acontece, meu amiguinho, que você é tão incompetente que mesmo sendo um bom moço você não consegue ser um. Há!

Chame de azar se quiser. Eu sei como você chama.

Você acha que é uma espécie de escolhido, melhor do que os outros, que Deus lhe prefere. Nem desconverse – você sabe.

Você achava que Ele ia lhe salvar a todo o momento, e olhe agora; onde anda sua arrogância?

Você e esse seu exame de consciência que nunca realmente é feito, santinho que só.

Acontece que agora você sabe que é você que está na linha, você é o próximo.

O tempo encurtou. Você nem se preocupa com a saúde, eu sei; estamos falando de morte e de salvação da alma – nem espere.

Quem sabe você não vai passar a se preocupar já, já. Com a saúde, eu digo.

20/06/2015

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